Comunidade científica observa perplexa uma sucessão de recordes e extremos sem precedentes na atmosfera e nos oceanos
“Em minha carreira de três décadas como meteorologista e agora meteorologista-chefe e especialista em clima, nunca observei tantos sinais vitais da Terra piscando em vermelho. Os meteorologistas e cientistas climáticos de todo o mundo estão assombrados com os recordes simultâneos literais ‘fora da escala’ sendo quebrados”.
As palavras são do meteorologista norte-americano Jeff Berardelli, em texto intitulado, “Fora da escala: os sinais vitais da Terra estão enlouquecendo”. Berardelli, que era meteorologista da rede de televisão CBS e hoje chefia a previsão do tempo de uma canal de televisão de Tampa, no estado da Flórida, resume o sentimento que toma conta da comunidade científica
Nas últimas semanas, o clima do planeta adentrou em território desconhecido. São recordes e recordes sendo quebrados simultaneamente e condições jamais vistas na era observacional.
Sim, o planeta já esteve mais quente no passado, há 125 mil anos. A diferença é que a última vez que o clima esquentou aos níveis atuais, o processo tomou milhares de anos por causas naturais e agora as mudanças estão ocorrendo em escala de décadas por evidente interferência humana.
Ontem, 3 de julho de 2023, foi o dia mais quente desde que os seres humanos começaram a medir a temperatura no planeta. A temperatura planetária média atingiu pela primeira vez 17,01ºC, batendo o recorde anterior de 16,92ºC, de 13 de outubro de 2016 e 24 de julho de 2022).
Também ontem, o novo dado de desequilíbrio energético médio do planeta de 12 meses foi atualizado e com novo recorde de 1,81 W/m². Isso equivale a dizer que a Terra está aquecendo a uma taxa média de 14,6 bombas de Hiroshima por segundo nos últimos 12 meses. O aquecimento a longo prazo dos oceanos é agora superior a 10 Hiroshimas por segundo nos últimos 3 anos. São 955 milhões de bombas de Hiroshimas em calor nos oceanos nos últimos 3 anos.
Dezenas de países devem confirmar que tiveram o mês de junho mais quente de sua história. Nos próximos dias, os principais centros mundiais que monitoram a temperatura do planeta devem informar que o mundo teve o junho mais quente desde que se iniciaram as medições. São os casos da NOAA e da NASA, dos Estados Unidos, e do Copernicus, da União Europeia.
Os recordes de temperatura atmosférica e um aquecimento sem precedentes dos oceanos ocorrem quando o El Niño ainda se encontra em seus estágios iniciais, ou seja, com a tendência de intensificação do fenômeno nos próximos meses e um tempo de resposta médio da atmosfera de seis meses, logo o que já assombra os cientistas tende a se tornar mais espantoso com novos e sucessivos recordes.
Ondas de calor extremo atingiram o Sudeste da Ásia nos últimos três meses, quebrando recordes nacionais de temperatura em países como a Tailândia e o Laos. Há semanas, o México enfrenta uma brutal onda de calor com mais de cem mortos. Em março, Buenos Aires teve um período quente sem precedentes e recorde para a época do ano com recordes de máximas e mínimas.
ATLÂNTICO NORTE SUPERAQUECIDO
O Atlântico Norte registra desde março temperaturas da superfície do mar em níveis recordes. Nas últimas semanas, as temperaturas em algumas partes do Oceano Atlântico Norte atingiram níveis extremos. O aquecimento anômalo está ocorrendo em uma gigantesca área do Atlântico.
imagemDados de satélite revelam que as águas superficiais em alguns locais chegam a estar 4ºC a 5ºC acima do normal para esta época do ano. Em 10 de junho, por exemplo, a temperatura média da superfície do mar na porção do Atlântico que se estende do equador até 60 graus ao Norte – até o Sul da Noruega, Sul da Groenlândia e as porções centrais da Baía de Hudson no Canadá – era de 22,7°C ou cerca de 1ºC acima da média registrada de 1991 a 2020.
O recorde anterior para a mesma data, de 22,1°C, ocorreu em 2010. Uma onda de calor marinha “inédita” e se intensidade jamais vista era observada nas costa do Reino Unido e da Irlanda, onde o junho foi o mais quente já observado.
O superaquecimento oceânico representa uma séria ameaça para as espécies, alertam os cientistas. As temperaturas do mar, particularmente na costa Nordeste da Inglaterra e no Oeste da Irlanda, estão vários graus acima do normal, quebrando recordes no final da primavera e no início do verão. Na costa do Reino Unido, o nível da onda de calor marinho atinge o máximo da escala que vai até 5. “Além do extremo”, resumiu o meteorologista britânico Scott Duncan.
O Mar do Norte e o Atlântico Norte estão experimentando temperaturas mais altas, mostram os dados. A Administração Nacional de Oceanos e Atmosfera dos Estados Unidos classificou partes do Mar do Norte como estando em uma onda de calor marinha de categoria quatro, considerada “extrema”, com áreas na costa da Inglaterra até 5°C acima do normal.
O Atlântico aqueceu pelas emissões de gases de efeito estufa devido à queima de combustíveis fósseis e também, mais recentemente, à diminuição da poluição do ar, permitindo a passagem de mais luz solar. Além disso, o enfraquecimento de centro de alta pressão junto aos Açores fez com que houvessem menos poeira sendo levada do Saara em direção ao mar. Menos poeira sobre os céus do Atlântico significa que mais sol penetra e aquece a superfície.
AQUECIMENTO OCEÂNICO NO MUNDO RECORDE
Uma sucessão de ondas de calor marinhas somada ao fenômeno El Niño faz com que o nível de aquecimento dos oceanos na média global atinja valores recordes para a data desde março. Dia após dia por meses os oceanos do planeta, na média planetária, estão com desvios positivos em suas anomalias jamais observados.
Os oceanos são como a “esponja” das emissões de gases do efeito estufa. Absorvem cada vez mais calor da atmosfera. Os índices de calor latente na parte superior dos oceanos não param de subir e atingem níveis recordes. Ao mesmo tempo, os níveis de dióxido de carbono na atmosfera seguem subindo sem parar.
A concentração média mensal de dióxido de carbono (CO2) no observatório de Mauna Loa, no Havaí, a estação de monitoramento atmosférico de referência mundial, atingiu um novo recorde de 419,13 partes por milhão (ppm) em maio, ante os 417,31 ppm em maio de 2020. “Isso é mais do que uma mera estatística”, alertou a Organização Meteorológica Mundial.
Para piorar, um evento de El Niño – que é variabilidade natural do clima e não gerado pelo ser humano – se instala no Pacífico e pode ser de forte intensidade. O fenômeno foi declarado recém na segunda semana de junho e o seu pico deve ocorrer no final de 2023, mas os efeitos na temperatura do ar do planeta atingirão o seu máximo em 2024.
GELO MARINHO EM MÍNIMO RECORDE NA ANTÁRTIDA
Depois de atingir um mínimo recorde no verão no início deste ano, o gelo marinho da Antártida continua quebrando recordes. Em meio à fase de crescimento do inverno, atingiu um nível recorde de baixa, muito abaixo do recorde anterior, para esta época do ano.
Os dados do National Snow and Ice Data Center (NSIDC) registravam a extensão do gelo marinho da Antártida em 11,7 milhões de quilômetros quadrados no fim de junho. Eram 2,7 milhões de quilômetros quadrados abaixo da média histórica de 1981–2010. O valor estava 1,2 milhão de quilômetros quadrados abaixo da menor extensão já registrada no dia, observada em 2022.
A comparação da concentração de gelo marinho no final de junho de 2023 com a borda mediana do gelo para a mesma época do ano mostrava concentrações de gelo marinho abaixo da média em quase todo o continente antártico. Somente em partes do Norte do Mar de Amundsen e perto da Antártida Ocidental, o gelo do mar se espalhava sobre a borda mediana do gelo de longo prazo.
Para ficar claro. Neste momento, a cobertura de gelo marinho na Antártida não passa por um processo de diminuição. Com o inverno, o gelo no mar está aumentando. Só que a uma taxa muitíssimo menor e mais lenta que o normal, o que acaba por produzir o enorme desvio em relação aos padrões históricos. Em outras palavras, deveria ter muito mais gelo no mar, embora o gelo esteja aumentando até que atinja seu pico anual em setembro e comece a diminuir.
O gráfico abaixo mostra o desvio padrão da extensão do gelo marinho da Antártica para 1º de janeiro a 1º de julho de 2023, com base na média de 1981-2010. Para aqueles que podem não entender, se o clima não estivesse mudando e isso estivesse acontecendo puramente por acaso, as chances seriam de cerca de 1 em 3 bilhões, diz o matemático Eliot Jacobson.
O comportamento do gelo marinho varia dia a dia e ano a ano por uma série de razões, e desvios da média de longo prazo, mesmo substanciais, já foram observados antes. Em comparação com o Ártico, o gelo marinho da Antártida exibe uma maior variação de extensões anuais máximas e mínimas, devido em grande parte às diferenças geográficas entre as duas regiões. “Mesmo assim, a atual baixa extensão do gelo marinho antártico é incomum”, escreveu a NOAA, agência de clima dos Estados Unidos, em comunicado.
INCÊNDIOS FLORESTAIS RECORDES NO CANADÁ
Centenas de lugares queimando ao mesmo tempo, um número recorde de resgatados e uma situação que pode durar meses. Devido aos incêndios históricos, o Canadá enfrenta um desafio imenso neste momento.
De Oeste a Leste, o Canadá está enfrentando uma temporada de incêndios florestais sem precedentes e seu pico, que geralmente ocorre em julho ou agosto, ainda nem foi atingido. Nenhuma província foi poupada, nem mesmo Quebec e Nova Escócia, no Leste, que normalmente não sofrem grandes incêndios. Um total de 490 incêndios florestais eram registrados no último dia de junho, mais da metade dos quais foram considerados fora de controle.
Em um ano típico, cerca de 7.500 incêndios florestais queimam mais de 2,5 milhões de hectares de florestas no Canadá. Até agora este ano, mais de 7,8 milhões de hectares (19 milhões de acres) – uma área quase tão grande quanto a Áustria – foram devastados. Em Quebec, 1,3 milhão de hectares foram queimados até agora, em comparação com uma média de menos de 10.000 hectares anualmente na última década. A área queimada em menos de um mês superou o total combinado dos últimos 20 anos.
As emissões de carbono liberadas pelos incêndios florestais já ultrapassaram o recorde anual canadense, segundo o observatório europeu Copernicus. Desde o início de maio, eles geraram quase 600 milhões de toneladas de CO2, equivalente a 88% das emissões totais de gases de efeito estufa do país de todas as fontes em 2021, informou. Os incêndios canadenses sozinhos em 2023 agora representam mais de 10% das emissões globais de carbono dos incêndios florestais em 2022 (1.455 megatons).
Após um início sem precedentes da temporada de incêndios, a previsão é que este seja o pior ano já registrado, segundo as autoridades, já que a temperatura quente e as secas devem persistir até o final do verão.
A fumaça dos incêndios do Canadá cruzou o Atlântico e chegou a países tão distantes como a Noruega e a Itália, na Europa. Nos Estados Unidos, cobriu extensas regiões do Norte e do Leste norte-americano com índices de qualidade do ar péssimos sem precedentes, como os que fizeram a cidade de Nova York ficar alaranjada com cenas de Blade Runner na segunda semana de junho.
-
Por MetSul.